quinta-feira, 8 de maio de 2008

Carta de um palhaço

Olá, como está?! Espero que esteja tudo bem por aí?


Estou escrevendo porque quero dividir com você um pouquinho do que vivo, pelo menos uma vez por semana, nos hospitais que visito como palhaço. Tudo bem, eu sei que você nem perguntou sobre o assunto, talvez você não tenha interesse em saber e ao começar a ler pense “Depois eu leio isso!” e deixe a carta sobre a mesinha, ao lado do telefone, por muito tempo. Mas eu queria dividir com você.


Não quero falar sobre a cor da minha roupa de palhaço, não quero falar sobre o número de quartos e muito menos sobre os prontuários que acompanham cada paciente. Queria falar pra você sobre os sentimentos, sobre os sorrisos, sobre as lágrimas, sobre as idas e vindas e todo o transito de emoções que corre diante dos olhos.


Ser palhaço é bom, faz bem para a alma, mas não é terapia! É como se ganhasse um brinquedo novo muito legal, muito bonito, mas que só pode ser jogado por duas pessoas. E é como se todas as outras pessoas fossem a “segunda pessoa” desse jogo. Ser palhaço no hospital te deixa alerta, atento, receptivo a tudo, talvez até mais do que em qualquer outro lugar. Todas as informações são dadas ao mesmo tempo, e diferente de um “desnarizado” você recebe todas elas, boas e más, engraçadas ou tristes... A realidade cai no seu colo! Como diz um amigo meu “as informações são dadas como um soco direto na cara, sem nenhuma defesa”. Como você lida com isso? “Não, não pense... Seja razoável e seja palhaço!” A peteca não deve cai, mesmo quando uma enfermeira pega a veia de uma criança que chora, quando um samba é dançado com intensidade da UTI Pediátrica com o batuque das enfermeiras no balcão e risos de pacientes, quando se ouve “por favor, diz o que eu quero ouvir” de uma avó que teve o seu neto atropelado, ou senão quando se ouve “Uau! Que máximo!” de uma enfermeira que acompanhava tudo quase escondida...


O interessante disso tudo é que todos os sentimentos, trabalhando muitas vezes um em oposição ao outro, se conversam sem conflitos. Um dá espaço ao outro, no seu tempo, no seu limite, de forma educada. Às vezes a dor permite que o riso se manifeste, mesmo que por uns instantes. Esse sorriso nasce dos momentos mais inusitados possíveis, como de uma pescaria de palhaços, numa montaria no meio do corredor, em uma dança que precise de “emoção” e termine em um choro escrachado, em um exame médico que um “toscópio” ouve pensamentos da criança, ou até mesmo em um simples passeio de elevador. E muitas vezes o eco disso tudo é uma lembrança quase física que mantém a harmonia desses dois sentimentos, alegria e tristeza Afinal de contas, não podemos fingir que a dor e a tristeza não existem. Elas existem sim, mas podem dividir o leito com outros bons sentimentos. Tudo se encontra no mesmo sentido, perdidos em uma só via de fluxo de informações e desinformações. Maluco demais né?! Então mudemos, digamos “que legal!” às próximas palavras, e que elas sejam lidas sem preocupação, sem nenhum peso ou tensão... Simplesmente sejam lidas e compreendidas.


Sabe o que eu gosto nesse trabalho todo? Gosto de conversas despretensiosas, aquelas conversas moles com médicos e enfermeiras... É aí que você conhece muita gente, é a oportunidade de olhar nos olhos de cada um e saber quem eles são. Também gosto de bater na porta e notar a expressão do rosto quando a porta se abre e vêem dois palhaços parados sob o batente! É legal quando você pergunta se pode entrar e uma pessoinha lá deitada na cama faz gesto com a mãozinha convidando a conhecer o quarto. Pequenos bichinhos de pelúcia se tornam feras, as grades da cama viram jaulas, mães viram domadores, soros viram aquários, e a criança é a dona de todo o safári pelo quarto! E nesse passeio pela vontade dos pequenos, já fui peixe, já fui criança, já fui invisível, já fui bonito, feio, fui quase inteligente... Fui muita coisa legal! E o melhor de tudo isso, é que me diverti junto com elas. Me diverti e aprendi muito! É incrível como se aprende com uma criança dentro de um hospital! Sinceridade, ingenuidade, e uma das máximas do palhaço que é tão difícil para um homem crescido, que é “ser você mesmo, sem medo nenhum”. É difícil ser, simplesmente ser, sem pensar e sem julgar! Eu e meu violão que o diga!


Um amigo-professor pensa no palhaço, na cena a ser construída, no jogo, como uma lasanha, que é feita por camadas, que deve ser servida e saboreada no momento certo! Eu ainda sou novo nisso tudo, estou aprendendo a fazer ovo! E acabei de pensar que o hospital se parece com um ovo, onde a criança, os pacientes, são as gemas, o núcleo, o centro. O palhaço é a clara, que tem que ser transparente pra chegar no seu estado maior de disponibilidade de ser ele próprio! E a casquinha são todos os profissionais que trabalham lá, desde a limpeza até a diretoria. São aqueles que protegem, que cuidam. O palhaço, a clara, está em contato com esses dois mundos, com esses dois lados do ovo, a casca e a gema. Mas essa conversa além de gastronômica e de combinação duvidosa (ovo e lasanha), também tem muita história pra contar!


Desculpa, isso acontece com freqüência quando tenho que falar sobre palhaço e hospital, eu viajo, vou além, me deixo levar pelas minhas vontades, meus sentimentos e acabo contando coisas que não são exatamente do dia-a-dia, mas sim das minhas impressões pessoais. Mas acho que faz parte também, senão, não seria uma carta, seria uma matéria da revista “Pequenas empresas, Grandes negócios”. Gosto de escrever assim, como se fosse uma conversa... Deixa mais informal, sinto como se eu estivesse sentado com você em algum lugar, te contando das minhas coisas.


Sempre quando estou no hospital, momentos antes de sair da sala onde nos preparamos, no momento de colocar o nariz busco em mim mesmo o “degrau” que me ensinaram, tento apertar o botãozinho mental que me leva pra onde eu quero ir... Fecho meus olhos, peço que tudo corra bem. Na saída, na hora de ir embora, às vezes, penso nas crianças que visitei, e quietinho, dentro de mim peço que tudo fique bem com a gente que vai e com aqueles que ficam no hospital.


É estranha a relação que se estabelece dentro daquelas paredes, tanto com enfermeiras, quanto com pacientes. No curso de psicologia, aprendemos uma coisa estranhíssima, que é a distância segura entre o psicólogo e o paciente. Mas e o palhaço?! Se eu for convidado pra ir à casa de um paciente, como já aconteceu algumas vezes. Por mais que eu não vá, é um convite que estou recebendo para conhecer seu mundo, sua intimidade. Não consigo fazer uma separação muito clara entre esses dois mundos. Visitei um menininho por quase um ano, todas as semanas. Fiz muita amizade com o pai dele, enquanto o pequeno estava em coma. Quando ele acordou do coma, a primeira vez que nos viu, chorou, mas chorou muito! Eu fiquei distante, não sabia se era medo ou outra coisa. O pai disse que era emoção, por conseguir ver a cor, o tamanho, o rosto daquelas vozes que passavam ali todas as semanas pra falar um monte de coisas “quase sérias”. Depois desse dia, sempre que chegávamos à UTI éramos recebidos com um sorriso banguelinha gigante! Eu adorava estar ali com ele. Nunca ouvi a voz do menino, devido aos problemas respiratórios dele, mas eu sabia tudo o que ele queria fazer e dizer. Quando voltei para trabalhar nesse hospital em que ele estava, cheguei na UTI perguntando por ele, mas ele já tinha ido embora. Não se sabe ainda se ele vai melhorar 100%, mas pelo menos agora ele está em casa. É uma sensação boa de saber que ele está bem melhor que antes, mas dá um aperto no peito de saber que um amigo foi embora! E ao mesmo tempo é uma sensação de “queria dizer tchau” e outro “prefiro não vê-lo mais aqui no hospital”. Eita sentimento bobo o nosso, né?! Leva e trás pensamentos que confundem mais ainda.


Tem também momentos mais ligeiros que marcam muito. Momentos bons e momentos ruins. Já vi um bebezinho morrendo na minha frente, e apesar de eu falar pra todo mundo que ficou tudo bem depois, eu sei que meus pensamentos ainda borbulham na tentativa de compreender aquilo tudo e falar “não, não era um filme... era de verdade”. Já tive a ponta dos dedos de um menininho cego passeando pelo meu rosto, “enxergando” o tamanhão do meu nariz e abrindo um sorriso enorme! Há pouquíssimo tempo, fomos surpreendidos por um menininho em coma, que sorriu quando tocamos e cantamos! E ainda bem que escrevi isso aqui, pois era um pensamento que estava fugindo... São tantas coisas, que eu ficaria muito tempo escrevendo. Mas quem sabe em uma outra carta, né?! Por enquanto eu fico por aqui mesmo. Obrigado por ler e aceitar essa partilha de sentimentos, que são muito mais que simples histórias e “informações”.


Um beijo grande


André Correia

Blog do André: Santa Basfémia


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Esse foi um texto que meu professor de clown e, grande amigo André escreveu.
O que mais gostei foi a transição entre ele e o Minduim (o clown dele/ele de clown) durante a carta. Sem contar a sensibilidade com que relata seu dia-a-dia no hospital. Um relato grandioso e ao mesmo tempo simples. Simples como a risada de uma criança, simples como um palhaço.

Parabéns André!!


obs.: Na foto, Dr. Acerola e Dr. Minduim, respectivamente.


2 comentários:

Anônimo disse...

E aí Arthur... Alguem tinha que comentar, mesmo que fosse eu mesmo...rs...
Obrigado pelo "grande amigo" e pelas coisas que comentou sobre o texto. Espero dividir mais textos assim com vc por muito tempo!
Abração cara!

Marô Zamaro disse...

Opa =)


Acho que passei uma impressão errada quando disse que não gostava de palhaços.
De fato, até tinha um pouco de medo deles! haha
Mas na verdade, as únicas formas de contato que eu tive com "palhaços" foram naquelas abordagens mercantilistas, para promoções de concessionárias, pedágios e afins...


Mas devo admitir que admiro muito quem se utiliza dessa arte não como auto-promoção, mas como meio de entrar em contato com o imenso universo presente na vida das crianças.

Mas após esse texto - muito bem escrito pelo seu professor - senti algo maior do que admiração, um sentimento de gratidão, talvez. Não sei se sou capaz de interpretá-lo.

Fato é que fiquei sem palavras ante tanta emoção presente nesse depoimento, que resume anos de uma carreira digna de todos os aplausos.


Então só me resta parabenizá-los, não por serem palhaços, mas por serem portadores de alegira. =)